19 de fevereiro de 2007

Em que medida o estado de conservação levanta algumas questões em relação à definição de obra original

Antes de equacionar a obra de arte como um bem material, correlacionando objecto original e estado de conservação, gostaríamos de fazer um pequeno apontamento, naquilo que em parte, pode ser uma valência interpretativa de uma pintura.

Uma questão pode ser sempre colocada à priori. O que é uma obra de arte? Pessoalmente, não sabemos, nem temos a pretensão de a definir neste pequeno ensaio. A nós, chega-nos por vezes, duas das valências que apreendemos das suas múltiplas dimensões, e dentro das quais, aquelas que definimos como “dual entendimento”. Um campo subdividido em dois momentos interpretativos: um, ao nível da estética (aesthetics), e outro, ao nível do bem material. O primeiro, na forma de filosofia do belo e da arte em geral, independentemente das circunstâncias de tempo e lugar; o segundo, ao nível do documento histórico, na sua essência física.

Directamente associado à questão da obra de arte, quando o estado de conservação condiciona uma leitura coerente, está a perca do sentido da fruição do belo. Isto é, a quebra de ligação entre o criador e o observador. Em nossa opinião, esta é a principal questão. A perca do diálogo, afectivo ou de intercâmbio intelectual, entre a obra de arte e o seu espectador.

Num segundo plano, aquele que é mais directo, está a questão da historicidade material, ou seja, o objecto per si, como documento histórico táctil. Este segundo plano, é frequentemente o mais acessível, porque para seu entendimento, é suficiente um olhar ao nível da camada cromática, e inferir se a obra está ou não muito degradada na sua materialidade. De uma forma ou de outra, o conservador de pintura tem principal desempenho nesta segunda fase interpretativa.

Nesta segunda questão, em relação ao tema de base – estado de conservação versus obra original –, para que se entenda com maior clarividência tais conceitos, utilizaremos, alguns exemplos, que em nossa opinião, podem ser casos paradigmáticos na pintura portuguesa do século XVI: “Ressurreição de Lázaro” do Retábulo da Charola, em Tomar; “Cristo deposto da Cruz, S. Francisco e Santo António”, do pintor Vasco Fernandes, actualmente, no Museu Nacional de Arte Antiga; Tríptico da Igreja da Nossa Senhora do Pópulo, das Caldas da Rainha; e “Anunciação” de Francisco Henriques, em espólio na Casa dos Patudos em Alpiarça.

Na primeira pintura, a “Ressurreição de Lázaro”, uma das Tábuas da Charola, encontramos um paradigma de uma tipologia de reintegração cromática – o repinte histórico.

A pintura da “Ressurreição de Lázaro” é uma obra concebida para a Charola do Convento de Cristo em Tomar, e faz parte de um conjunto original de doze painéis, de grandes dimensões[1]. Trata-se de um conjunto elaborado, provavelmente, na segunda década do século XVI, por iniciativa do rei D. Manuel I. Entre várias questões, e pelo facto da obra ser demasiado representativa, a sua fortuna crítica, recorrentemente é associada ao pintor régio mais importante da corte – Mestre Jorge Afonso (Batista Pereira 1997: pp.165-167).

Na pintura da “Ressurreição de Lázaro”, uma obra singular do ponto de vista iconográfico, pela nossa associação da figura de manto azul ao rei D. Manuel, transcrita por Pedro Redol (Tábuas da Charola 2004: p.28), esta apresenta uma extensa intervenção de restauro, na forma de acrescento de suporte e de repinte histórico. Nesse painel, a tábua na esquerda é um acrescento, o hemiciclo superior também, assim como, duas tábuas do lado direito. Fruto de um restauro, que pensamos oitocentista, proveniente de um projecto de restauro de D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha e de Dona Maria II, que exerceram reinado entre 1834-1853. Na pintura, é acrescentada uma figura não original do lado esquerdo, assim como, cinco apóstolos do lado direito, que produzem uma interpretação iconográfica distinta. Todas estas considerações foram verificadas durante os últimos estudos técnicos, efectuado no painel, por parte do Instituto Português de Conservação e Restauro, durante 2002 e 2004. Para validação científica desses argumentos, foram efectuadas radiografias, análises micro químicas de pigmentos e identificação macroscópica de madeiras.

Na segunda pintura acima enunciada, apresentamos uma das obras mais sui generis de Vasco Fernandes, onde só pela assinatura é possível depreender a autoria da obra, uma vez que o desgaste na camada cromática é demasiado acentuado, e condiciona a interpretação da obra. Nesta pintura, firmada numa zona central, correlacionada pela leitura da assinatura latinizada – VELASCUS –, ao pintor Vasco Fernandes. Segundo a opinião de uma historiadora, esta pintura “contribuiu, no imediato, para aumentar a polémica em torno da verdadeira identidade do pintor e da autenticidade das assinaturas” (Rodrigues 1992: p.39). Já anteriormente, em 1924, Vergílio Correia, “através de um inestimável trabalho de pesquisa documental, prova ser da autoria do Vasco Fernandes o também controverso conjunto retabular da Sé de Lamego, confirmando, simultaneamente, pela analogia de assinaturas, a autenticidade do tríptico Cristo deposto da Cruz, S. Francisco e Santo António” (Op.cit., p. 42).

Em muitas situações, e quando as fronteiras técnicas e pictóricas são pouco evidentes, como é o caso do século XV e XVI, pode-se perder o sentido da “época”. Não é uma questão da interpretação do tema cristológico, mas sim, de variações ténues na materialidade de um período histórico. No nosso caso, na pintura de Grão Vasco, a questão não se coloca porque a peça está assinada, e ao que se pensa, na historiografia, com uma assinatura original. Porque perante uma extensão tão significativa de lacunas, dificilmente se pode afirmar se estamos defronte de uma pintura do início do século XVI ou do final do século XV.

Uma questão análoga, de dúvida, é colocada com o monograma associado a Francisco Henriques, pintor do início do século XVI, observado nos Painéis de Alpiarça, na pintura da “Anunciação” (Batista Pereira 1997: p. 124), e que pelo facto da assinatura estar diminuída em relevo, dificulta uma directa e fácil interpretação. Porém, por meio da fotografia macro é possível depreender um sugestivo monograma. Todavia, neste caso, a questão é inversa em relação ao caso anterior. A pintura é perfeitamente associável à obra de Francisco Henriques, tanto do ponto de vista documental como estilistico, e o monograma por sua vez, levanta sempre uma ligeira dúvida.

Uma nota, também, para as próprias molduras. Esses elementos são importantes para a valorização estética e conservativa dos painéis, e pelo facto de não serem sempre originais, podem condicionar atribuições e datações fidedignas. Um dos exemplos em Portugal enquadrável em relação a este tema é o Retábulo da Sé do Funchal, um dos poucos quinhentistas que conserva praticamente toda a sua estrutura original, apesar de ter sofrido algumas pequenas alterações em 1722 (Batoréo 2004: p. 120), e que pelo facto de ser provavelmente original, pode permitir pelo seu estilo, uma validação de datação das pinturas.

Ainda em relação a esta temática, ao das molduras originais, uma questão pertinente encontra-se em estudo e sem resposta clara para a historiografia portuguesa. Trata-se do Tríptico das Caldas da Rainha sito na Igreja da Nossa Senhora do Pópulo, que pelo facto da moldura apresentar em parte um estranho recorte condiciona diversas opiniões. Acerca do tríptico encontramos referências que indicam que o conjunto “ levanta problemas diversos, situáveis não apenas ao nível das suas características estilísticas e, portanto, autoria [...] mas também a sua localização actual…” (Op. cit., p.149). A questão da moldura, adaptada de forma pouco comum, ao conjunto de pinturas, alimenta actualmente uma série de teorias historiográficas. Umas que defendem que o retábulo está deslocado, e que não se encontra no devido lugar, isto é, no altar-mor da igreja, outras que acham que o retábulo esta no devido local. A ser feito um estudo, substancialmente simples, e de observação ao perto, podia-se facilmente dissipar muitas das dúvidas. Quanto mais não seja, pela observação à vista desarmada das rebarbas em torno da pintura, sem desmontar as molduras, poderíamos chegar a patamares mais conclusivos, se a moldura é original ou não. Enquanto isso, a historiografia esgrime-se em várias teses (Idem, pp.149-159).

Para a determinação do objecto como documento original, o conservador de pinturas serve-se por vezes de um conjunto de exames e análises, na maior parte das situações, após a interpretação da originalidade da obra, na perspectiva da constatação da extensão de repintes ou da ausência significativa de matéria cromática original.

Nesta ambivalência, está maioritariamente o património pictórico português do século XVI, e em princípio, o reflexo das práticas de restauro oitocentista. Quiçá, o momento mais significativo para o condicionamento do estado de originalidade das obras, e consequente estado de conservação.

Trata-se de uma época nacional de conturbadas contingências políticas, reflexo de uma crise europeia desencadeada pela Revolução Francesa de 1789, que viria a provocar a queda da monarquia tradicional portuguesa. Por volta de 1808, ocorrem as invasões napoleónicas, deixando Portugal com sede política no Rio de Janeiro, desde essa data, até 1821. Em função disso, desenvolve-se uma depressão económica e uma situação de vácuo político (Saraiva 1983: p. 397). Alguns anos mais tarde, mais precisamente em 1834, a extinção das ordens religiosas masculinas, favorecia o abrir de portas dos conventos, deixando o terreno livre para o saque e delapidação de algum património pictórico de pintura quinhentista, por parte de uma burguesia liberal emergente. Até meados do anos 50, a situação pouco melhora, “ A Guerra civil agravou a crise económica que se arrastava desde 1807, ao desarticular do aparelho produtivo, nomeadamente ao nível da economia agrária, imperando o saque e o mútuo confisco […] assim, a «economia de guerrilha», estrangulando os stocks alimentares e produzindo mortalidade elevada, fazia ressurgir aspectos de uma crise estrutural, o ciclo infernal da demografia e da economia do Antigo Regime. Este aspecto é determinante, pois só em 1851, com a Regeneração, a paz civil se pode declarar definitivamente”. (Catroga e Archer de Carvalho 1996: p.31). Pensamos, que para o entendimento da obra de arte portuguesa, temos que ter em conta estas situações conturbadas, que em parte contribuíam para a delapidação do património, e condicionamento do estado de conservação das obras. Ao observar algumas das obras de arte portuguesas, constatamos a incúria política da época, sobretudo aquela oriundas dos conventos e igrejas, e que de alguma forma, foram indevidamente expropriadas à igreja e entraram nos círculos comerciais à mercê dos restauradores.

Uma época de fragilidades socio-económicas, que promove a emergência do pintor/artesão de oitocentos. Uma figura no tecido comercial, que em determinados casos, é proveniente da emergência das Academias, e que pela natureza do seu mester, é-lhes atribuídas competências de restaurador. Uma figura social, com um estatuto ainda pouco definido, orientado multifacetadamente para as artes decorativas, comprometendo-se a intervir em qualquer tipologia de superfície. É o pintor/artesão que trabalha em simultâneo em muitos suportes: em retábulos, em estuques, na imitação de marmoreados, em pintura sobre tela, em pintura mural, em painéis de azulejo, e em intervenções de restauro.

Da mesma forma que emerge o pintor/artesão do século XIX, emerge uma burguesia romântica, que promove as artes decorativas, e de uma forma geral, favorece a ascensão da sensibilidade artística ao nível urbano. Uma herança de natureza socio-económica da sensibilidade setecentista do iluminismo tardio português. Que promove, provavelmente, tal como sugerimos atrás, uma cultura emergente de práticas de restauro.

No início do século XX, Luciano Freire, aquele que foi o pintor/restaurador de charneira entre um conceito mais actual de conservar e o de restaurar, alertava para uma nova mentalidade, fazendo a apologia da “reintegração”, uma atitude diferente da acção de repintadores oitocentistas.

No entanto, já no final do século, em 1885, umas das referências para nós mais esclarecedoras das práticas de limpeza de estratos cromáticos, é dada por Manuel Macedo,[2] que refere os seguintes materiais e técnicas: saliva, urina, água, lixívia, sabão, essência de terebintina, “espírito do vinho”, panos para esfregar, boneca de algodão, raspadeira, cinza de charuto como abrasivo, tudo isto, tendo em conta ”olho atento e mão leve”.

Todavia, apesar de não estar referido, suspeitamos do uso de substâncias excessivamente básicas, feitas à base de hidróxido de potássio, e que condicionariam não só questões de nível interpretativo, mas, também, a aparência plástica das pinturas, ao nível da técnica. Chegamos a uma situação, onde não se consegue perceber, quando se observa à vista desarmada, face aos múltiplos repintes e vernizes, se estamos perante uma pintura a óleo, a têmpera ou a têmpera gorda.

Quanto às análises laboratoriais, trata-se de um recurso extremamente importante para a identificação dos materiais, e em si, a questão nem sempre é fácil. A determinação de aglutinantes numa pintura demasiado intervencionada coloca dificuldades na interpretação das técnicas espectroscópicas, isto é, na correlação com espectros padrão. Nesta perspectiva, podemos dizer que uma alteração significativa do estado original da pintura não só afecta a leitura da obra, mas condiciona as análises laboratoriais.

Na escultura medieval portuguesa, quiçá, as representações artísticas nacionais com maior antiguidade secular, ao nível dos estratos pictóricos, prevê-se que pela presença de vernizes, resinas e ceras não originais, a análise laboratorial esteja em parte condicionada, desde que não se utilize a cromatografia gasosa acoplada a espectrómetro de massa (GC-MS). Uma indicação, já referida, em anteriores estudos técnicos sobre uma via possível para análises de materiais, “ o GC-MS permitiu com grandes certezas identificar os materiais dos vernizes, e isto, facultou ao restaurador distinguir entre vernizes aplicados em intervenções anteriores e os originais das pinturas.” (ROY e DUNKERTON 2002, p.128). Salientamos esta técnica de análise porque se tem revelado extremamente eficiente, no entanto, devido ao seu elevado custo e especificidade laboratorial no estudo de obras de arte, infelizmente é pouco aplicada em Portugal.

Assim, perante o facto dos estudos técnicos em Portugal estarem pouco desenvolvidos, no caso de pinturas a têmpera, o facto das peças estarem indevidamente envernizadas, perturba a interpretação da sua originalidade. E isso coloca-nos outro tipo de questão – os vernizes. Umas vezes, pelo facto de não existirem originalmente e estarem aplicados indevidamente, outras vezes, pelo facto de não terem vernizes com índices de refracção adequados, em consonância com os originais. Porém, mesmo para o conservador atento, a aplicação de um verniz nem sempre é fácil de superar, porque em muitas situações não temos referências aos vernizes originais de determinada pintura. Por vezes, os próprios receituários não são fáceis de interpretar, porque nem sempre estão cirurgicamente explicados, tal como, a nossa sensibilidade científica contemporânea exige.

Em conclusão, após os diversos exemplos acima referidos, constata-se que a interpretação da obra original, está sempre condicionada pelo estado de conservação. Umas vezes, em função das ocorrências históricas, económicas e políticas, outras vezes, em função dos fenómenos de degradação intrínsecos da própria obra material, noutras pela acção directa dos restauros.

O restaurador, em suma, é definitivamente uma figura preponderante no xadrez, que pelas condicionalidades da profissão, pode interferir, intencionalmente ou não, nos valores interpretativos da obra. Na prática, trata-se de alterar pontualmente os conteúdos das pinturas, que frequentemente se desenvolvem em torno das cenas iconográficas, das representações de momentos históricos, das passagens mitológicas, das leituras alegóricas, dos retratos, das paisagens, das arquitecturas, etc.

Porém, é incontornável que para entender uma obra de arte, pelo menos na sua “condição material”, são necessários estudos técnicos profundos. Estudos que evidenciem a fortuna historiográfica, e um pragmático entendimento da obra em função do seu momento histórico de produção. Em paralelo, outros estudos orientados para a conservação e restauro, auxiliados pelos métodos de exame e análise, que apesar de nalgumas situações serem falíveis, são inequivocamente processos que contribuem para a valorização histórica e conservativa.

Uma ciência como contributo à dimensão técnica, útil a ambos os pares – historiadores de arte e conservadores de pinturas. Porém, se tais métodos de exame e análise não forem colocados em primeiro plano, e não servirem de modo estrutural, estaremos a sustentar teses de história da arte, e práticas de conservação de pintura pouco profícuas.

Frederico Henriques

frederico.painting.conservator@gmail.com


[1] As dimensões médias são 4 metros por 2 metros e meio.

[2] Ver em Restauração de Quadros e gravuras, p.6.