19 de fevereiro de 2007

Considerações acerca da radiação infravermelha no estudo tecnológico das pinturas de cavalete

novas FRONTEIRAS NOS SISTEMAS de varrimento laser


O objectivo deste texto é apresentar algumas considerações sobre uma nova aplicação da radiação infravermelha, e as potencialidades do varrimento laser. Uma instrumentação com tecnologia de ponta que opera com radiação nessa banda do espectro, e que em determinadas situações pode ser aplicado em pinturas. A título de exemplo, relataremos dois ensaios que efectuámos em pinturas monumentais da Charola do Convento de Cristo, do século XVI. Referimo-nos, nomeadamente, a duas pinturas quinhentistas manuelinas, sobre madeira da Flandres (Q. petraea), da Charola do Convento de Cristo em Tomar. Ambas as obras estão atribuídas em alguma historiografia à oficina de Lisboa do pintor régio Jorge Afonso: “Ressurreição de Lázaro” e “Entrada Triunfal de Cristo em Jerusalém”.

Numa breve referência ao enquadramento iconográfico das obras, importa referir que ambas estão associadas a motivos de natureza cristológica. Na “Ressurreição de Lázaro” podemos observar Jesus Cristo ao centro com manto de azurite, e do lado esquerdo diversas personagens frequentemente associadas ao povo, que testemunham o milagre na presença de Marta e Maria. Do lado direito da composição doze apóstolos, e por cima dos mesmos o monte Moriá, com uma arquitectura fantasiosa que sugere uma das entradas da cidade e uma das reformulações de Herodes na muralha da cidade – a Torre Antónia.

Quanto à pintura “Entrada Triunfal de Cristo em Jerusalém”, do ponto de vista litúrgico o canto de Hosana, a aclamação de Jesus como Filho de David e Rei de Israel, uma passagem previamente referida nos textos proféticos de Zacarias (Zac. 9:9), observamos a saudação do povo numa das portas de Jerusalém no lado direito da obra, no centro deparamo-nos com o corte dos Ramos por parte de três personagens, e do lado esquerdo da obra, o séquito de apóstolos que acompanham o Messias na sua jumenta.

A mais significativa utilização da radiação infravermelha no estudo técnico de obras de arte é feita para capturar imagens do desenho subjacente em pintura antiga. Os três sistemas convencionais conhecidos são: a fotografia com película sensível ao infravermelho, a reflectografia de infravermelho (Bonford 2002: 10-25) e mais recentemente a fotografia digital.

Numa breve resenha das metodologias, já relatada numa vasta bibliografia, podemos começar por referir que a fotografia de infravermelho é concebida de forma semelhante à fotografia convencional. Tem a particularidade de ser necessário utilizar um filme sensível à banda de infra-vermelho do espectro, a colocação de um filtro de gelatina ou vidro na objectiva da câmara, e utilização de tempos de exposição elevados, sujeitos a ensaios de temporização. A imagem obtida em tons de cinza pode ser contrastada para evidenciar o desenho subjacente, e as descontinuidades da superfície do tipo de repintes.

Quanto à reflectografia de infravermelho, uma técnica desenvolvida nos anos sessenta por J.R.J. van Asperen de Boer, permite captura de imagens por intermédio de uma câmara de vídeo (chamado vidicon). Este sistema, apesar de utilizar comprimentos de onda superiores, que na prática reflecte-se no atravessamento estratos cromáticos de maior espessura. Em algumas situações, consegue atravessar, ainda que com dificuldades, pigmentos verdes e azuis à base de cobre. É frequente que o resultado final deste processo, o da reflectografia, apresente imagens com aberrações esféricas, que dificultam o processo de montagem em mosaico, sobretudo, quando se quer caracterizar uma extensa área da pintura.

O sistema de fotografia digital é concebido pela elevada sensibilidade dos sensores CCD (charge-coupled device) das câmeras digitais, removendo mecanicamente os filtros interiores ou utilizando o switch de determinadas câmaras que permitem a leitura em nightvision. Podemos referir, que o sistema em Portugal tem sido pouco desenvolvido nos últimos anos, conhecidas as primeiras aplicações[1] nas “Tábuas da Charola” de Tomar em 2002 (ver em anexo fotográfico a figura 4), e posteriormente os registos[2] do “Painel de Miragaia”, no Porto. Pensamos que de momento, a aplicação deste sistema já se encontra parcialmente generalizada, por parte de alguns conservadores-restauradores e das universidades.

Quanto ao varrimento laser, começamos por referir que é um equipamento recente, provavelmente, uma das últimas fronteiras em tecnologia para a conservação e restauro, aplicado pela primeira vez pelo National Research Council of Canada, em 1978. Com objectivos semelhantes aos da fotogrametria[3], o varrimento laser é fruto da tecnologia de ponta, comummente, aplicado em registos topográficos. Porém, a sua aplicabilidade não se confina somente a registos topográficos, permitindo um vasto conjunto de aplicações, como é o caso das reconstruções arquitectónicas em virtual, da representação fiel de alçados em edifícios, da análise morfológica, reconstituições virtuais de objectos arqueológicos[4], assim como, caracterização de superfícies em arte contemporânea.

O equipamento é constituído por um corpo central onde é produzido um feixe de radiação laser. O instrumento é assente num tripé, acoplado a um computador com software específico, que por sua vez é operado através de um programa informático que captura de dados e imagem. No nosso caso foi utilizado um Sistema de Varrimento Laser, que emite um feixe aos 785 nm, isto é, no infravermelho curto.

Na iniciativa, aplicou-se o sistema numa área pouco convencional, especificamente, na pintura sobre madeira. Obtiveram-se resultados que pensamos de natureza inédita, na captura de imagem do desenho subjacente e na caracterização de intervenções ao nível da superfície, nas reintegrações cromáticas[5].

Contudo, a utilização do sistema de varrimento laser não é de todo original em pintura sobre madeira[6], como o caso do trabalho[7] do Museu do Louvre na célebre “Gioconda” de Leonardo da Vinci. Nesse caso, o sistema foi aplicado para caracterização morfológica do suporte de madeira, e respectiva alterabilidade mecânica do suporte. Todavia, uma vez que da nossa parte, foi utilizado um sistema com a particularidade de emitir um feixe na zona de infra-vermelho curto, foi-nos possível, além do registo de natureza morfológica, capturar imagens do desenho subjacente[8] e identificar claramente reintegrações cromáticas recentes.

Para contextualização do método, entre as diversas metodologias, é importante referir que para estudo de obras de arte podemos encontrar dois grandes tipos de sistemas: os exames de superfície e as análises de ponto. Nas análises de ponto, temos um vasto conjunto de métodos que vão desde a Cromatografia de camada fina (TLC), à espectrometria de Raman (RAMAN), à microscopia electrónica (EM), à difracção de Raios-X (XRD), à fluorescência de Raios-X (XRF), etc. Por sua vez, estes podem ser não destrutivos ou destrutivos. Nos exames de área, os mais conhecidos são os sistemas que fazem uso da radiação invisível. Com comprimentos de onda que vão desde os raios gama aos infravermelhos, e que têm sempre como objectivo gerar uma imagem visível dos objectos à vista desarmada. Dentro destes temos: a radiografia, a auto-radiografia, a fotografia de ultravioleta, a fotografia e reflectografia de infravermelho. Segundo a óptica apontada anteriormente, o varrimento laser é fundamentalmente um método de exame de área.

Quanto à metodologia utilizada, consistiu em fazer o registo em duas fases. Começou-se no primeiro caso pela pintura da “Entrada Triunfal de Cristo em Jerusalém”, apeada e junto a um dos nichos do deambulatório do lado da Epistola. Esta obra no momento do registo, encontrava-se numa fase intermédia da nossa intervenção de conservação e restauro, após a limpeza química da superfície (remoção de vernizes e repintes), antes da aplicação de camada protectora e preenchimento de lacunas. O processo na “Ressurreição de Lázaro” foi efectuado com a pintura acondicionada no seu nicho, num plano expositivo intermédio da Charola, colocada aproximadamente a três metros de cota. Salientamos a localização das obras porque na primeira peça o processo foi feito com o varrimento laser enquadrado a meia altura da obra (modo convencional), e na segunda peça, com o aparelho a perfazer um ângulo aproximadamente de 30º com o plano da superfície pictórica. Acrescentamos, que em ambas as situações foram feitos registos de carácter morfológico (nuvens de pontos), e de captação de imagem, as duas formas possíveis de armazenamento de dados com este sistema, que do ponto de vista físico aplica fenómenos de reflectância.

Em matéria de levantamento de relevo topográfico ortorectificado, apresentamos resultados provisórios sobre a pintura da “Entrada Triunfal em Jerusalém” (fig.1), onde se constatou algumas das ideias inicialmente conhecidas empiricamente durante o processo de intervenção no suporte, acerca dos empenos mecânicos do painel, e tendências nos seus movimentos. Na figura referida, um mapa de deformações, observamos um ténue encurvamento para trás, na zona de hemiciclo superior, assim como, um recuo na zona inferior direita. Com base nestas informações, é possível prever a alterabilidade do painel a longo prazo, e consequente interpretação na evolução do estado de conservação.

Fig.1 - Relevo topográfico ortorectificado (Superfície, Lda.)

Quanto ao desenho subjacente, aquele que é permitido captar com um aparelho de sensibilidade espectral em torno do infravermelho curto, constatou-se que o mesmo era capturável neste sistema. No nosso caso, e pelo facto de já ter sido feito noutro programa, as fotografias de infravermelho digital e as reflectografias de infravermelho, foi possível validar, que em função dos materiais e da espessura da pintura, o mesmo estava presente. Todavia, o sistema não se encontra, de momento, com a melhor definição possível, trabalho esse que está em curso e será avançado noutros posteriores estudos. Uma definição optimizada que permita identificar a técnica precisa do pintor, a fluidez do traço, uma interpretação precisa das mudanças de composição pelo artista/artesão, o facto de estarmos perante uma técnica a seco ou a líquido, ou de uma técnica a ponta seca. Porém, em relação às intervenções de retoque anteriores, foi possível determinar com maior exactidão as áreas afectas à intervenção de reintegração cromática, sua heterogeneidade material e extensão.

Além do desenho subjacente, uma das possibilidades da utilização do sistema é na captação e registo de linhas de referência, uma técnica pictórica, efectuada na forma de incisão. A técnica é conhecida nalguns exemplos de pintura quinhentista portuguesa para lançamento das arquitecturas[9]. Pensamos que extremamente útil, seria aplicar o sistema em modo de determinação do relevo topográfico, na obra de Caravaggio, conhecidas que são as referências, que este pintor utilizava regularmente estiletes metálicos para primeiro apontamento - ou esquiço, muito simplificado -, na sua pintura obra pictórica em geral. Na pintura de “Judite cortando a cabeça de Holofernes”, são visíveis esses apontamentos, feitos directamente sobre o preparo, antes da construção cromática[10]. Frequentemente, nestes casos, o sistema de captação da imagem é o da fotografia com luz rasante. Apesar de não ser conhecido, até à presente data, a aplicação do sistema com o objectivo de detectar esta particularidade técnica, pensamos que dessa forma, poderá feito um registo de caracterização extremamente preciso. A isso se deve, o facto de existirem actualmente sistemas de varrimento laser que podem conferir uma definição do relevo, a partir dos 10 microns[11]. Dessa forma, estaremos perante um modelo de caracterização único das linhas de referência traçadas a ponta seca, efectuadas por meio de incisão, distinto da técnica de registo de imagem, por meio da utilização da radiografia[12] ou da fotografia de luz rasante.

É importante salientar, também, e de modo conclusivo, que a utilização do sistema de varrimento laser, implica um sério investimento científico em programas informáticos de geomática, assim como, nas operações de tratamento de informação por parte dos operadores. Actualmente, em específico na área patrimonial, encontram-se em estudo e aperfeiçoamento essas metodologias no domínio da informática[13]. Desta forma, pensamos que num futuro breve, mais estudos sistemáticos de sinergia entre o varrimento laser e a conservação e restauro, podem dar outros contributos para a área, e que por sua vez, se estenderão à dimensão da história da arte.

Assim, concluímos que com base em laser scanners, um sistema sem contacto directo com a obra, é possível efectuar registos de dados na forma de nuvens de pontos, que modelam o objecto em 3D. O mapa das reflectâncias, em cinzentos, permitirá novas leituras e interpretações das obras.

Frederico Henriques

frederico.painting.conservator@gmail.com


[1]Efectuado no âmbito do Programa Operacional da Cultura no Estudo de pintura portuguesa quinhentista. Ver: Pintura da Charola de Tomar, IPCR, 2004, p.38.

[2]Desenvolvido pelo Dr. Luís Bravo da Universidade Católica Portuguesa, centro regional do Porto. Apresentação pública proferida nas III Jornadas de Arte e Ciência – Estudo e Conservação da Pintura sobre Madeira, 3 e 4 de Junho de 2005.

[3]A fotogrametria é a técnica que permite efectuar medições rigorosas a partir de fotografias. Com fotografias aéreas ou terrestres são obtidas medidas de posições de pontos que vão dar origem ao desenho de cartas topográficas ou planimetrias de outros objectos. As fotografias aéreas são adquiridas com alguma sobreposição, o que origina, devido a diferentes perspectivas de um mesmo local, uma percepção das três dimensões do terreno, permitindo assim efectuar medidas tridimensionais de forma rigorosa.

[4]Apresentação efectuada no 2º Encontro Internacional de Tecnologias aplicadas à Museologia, Conservação e Restauro por Hugo Miranda Pires e Pedro Ortiz (Superfície, Lda. / Universidade da Estremadura), em 19 Outubro de 2006 na Universidade de Coimbra.

[5]No decurso de uma intervenção de conservação e restauro, foi feito o varrimento laser pela empresa Superfície-Geomatica Lda. Hugo Pires e Eng. Patrícia Marques.

[6]Ver Science e Vie, 2006, pp. 112-121.

[7]Não é referida a instrumentação utilizada, nem informações de carácter técnico, específico do sistema.

[8]Conhecido anteriormente, e parcialmente visível à vista desarmada. Ver Tábuas da Charola, IPCR, 2004.

[9]Ver a título de exemplo, num painel de António Nogueira, a marcação de linhas de incisão em pavimentos e arquitecturas (Retábulo de Ferreira do Alentejo, IPCR, p.50). Apesar de não estar documentado, conhece-se, por nossa observação, linhas de referência na pintura da “Virgem e Apóstolos”, do conjunto de pinturas do retábulo das “Tábuas da Charola”.

[10]Veja-se na obra acerca de Caravaggio, “ Como en otras obras de Caravaggio, son visibles algunas finas incisiones; muchas de ellas, ya advertidas por Mahon, habían sido puestas de relieve por T.M. Schneider y K. Christianses. La posibilidad de observar la pintura después de la limpieza, una vez retirados los barnices, há permitido una identificación más precisa, aunque no completa del todo”, na publicação do Museu do Prado, em 2000, p.78.

[11]Ver os trabalhos de colaboração do National Research Council of Canada (NRC) e do Centre de Recherche et de Restauration des Musées de France (C2RMF).

[12]Veja-se o exemplo do registo associado à figura feminina de primeiro plano, no Painel do Infante de Nuno Gonçalves. (Nuno Gonçalves – Novos Documentos, 1994, pág. 84 e pág.131).

[13]Superfície – Geomatica, Maia, Portugal – mail@superfície-geo.com