2 de março de 2007

A madeira como suporte na pintura: Um olhar pelo "versu"

In Pedra e Cal. Lisboa: Pedra e Cal, nº26, 2005, pp. 18-19.



Por tradição, entende-se a pintura sobre madeira como uma obra de arte, partindo do princípio que a imagem representada é a totalidade do todo artístico. No caso específico da pintura correntemente denominada por “pintura sobre tábua”, a madeira encerra em si diversas particularidades, associadas à sua materialidade.


Figura 1- Pintura[1] sobre madeira atribuída a António Vaz, século XVI.(FH)

Figura 2 - Vista geral do verso.(FH)

O motivo da redacção deste texto, prende-se com o facto de muitas vezes, se negligenciar o valor intrínseco de um suporte de madeira, canalizando-o, quando está em causa a sua conservação, para soluções traçadas segundo directrizes provenientes das “práticas de marcenaria”. Se bem que tais práticas sejam indiscutivelmente úteis e que transmitem muitas e valiosas técnicas preservadas por séculos de história, devem contudo ser ponderadas e flexíveis quando se cruzam com a especificidade da conservação de suportes de pintura em madeira.

Antigas atitudes de “corte e costura”, hoje tremendamente contestadas nas intervenções sobre os suportes, devem de facto continuar afastadas, excepto se a integração física da obra for comprometida por um problema estrutural. Com isto, queremos explicar que deve existir a consciência da preservação material do suporte, tanto quanto possível, porque o mesmo nos transmite, por um lado, inumeráveis informações sobre o percurso da vida da peça, e por outro, um prognóstico presente e futuro do seu estado de conservação.

A interpretação de técnicas utilizadas para a execução das obras, quer por ensambladores ou panel-maker´s, permitem compreender momentos históricos, segundo as características evidentes de determinadas oficinas. A identificação precisa da madeira presente numa obra, através de métodos de exame e análise, é um dos pontos fundamentais para a determinação das suas alterações. A dendrocronologia tem mostrado ser um método de datação bastante válido, para se chegarem a conclusões mais definidas sobre a questão das atribuições aos pintores. Aliás, este método juntamente com a radiografia da peça, são sem dúvida documentos imprescindíveis para o cruzamento de informação inicialmente sugerido pelas conclusões do historiador de arte clássico. Desta forma, a radiografia é um exame extremamente completo, pela riqueza de informação que nos evidencia, associada tanto aos processos degradativos biológicos e factores de interacções mecânicas como à racionalização da técnica construtiva do painel. Sem este cruzamento informativo e sem um diálogo triangular entre historiadores, conservadores-restauradores e cientistas, a pintura sobre tábua continuará a ser meramente avaliada e apreciada pelo lado mais “colorido” da obra.

Figura 3 – Radiografia de um pormenor numa pintura maneirista. (MG)

Figura 4 - Início do desenvolvimento de podridão cúbica, ocasionada por fungos xilófagos. (MG)

Figura 5 – Marca personalizada do panel-maker Michiel Vrient´s no verso de uma tábua setecentista flamenga [2].(FH)

Múltiplas ilações se podem extrair da imagem principal de uma pintura, como é o caso, entre muitos exemplos, do desenho subjacente obtido através da fotografia e reflectografia de infravermelho.

Figura 6 – Registo do desenho subjacente realizado com fotografia digital no infravermelho.(FH)

Mas aquilo que frequentemente se omite é a importância técnica e estrutural de um suporte lenhoso. A madeira numa obra de arte, por exemplo quinhentista, representa sensivelmente 99 % da materialidade desse objecto. Então, no entendimento do estado de conservação desse objecto, são os 99% que vão de facto contar-nos o comportamento da peça nos próximos tempos. É portanto um erro crasso definir os problemas de uma obra e delinear uma intervenção sem a prévia consulta de todos os aspectos que são influenciáveis directamente ou indirectamente no suporte. Tais aspectos são provenientes de fontes externas (temperatura, humidade, poluição, luz), ou fontes internas intrínsecas do objecto (agentes biológicos, físicos, químicos e mecânicos), ou mesmo, por questões humanas associadas à manipulação e transporte. Sendo assim, ao proprietário de uma obra de arte, importa salientar que para a Preservação desta é fundamental uma gestão integrada dos diversos riscos. O risco mais destrutivo e irreversível é o fogo, mas especial atenção deverá ser dada à estabilização da humidade relativa ambiente, tendo em conta que, o mais nefasto é a variação brusca desses mesmos valores.

Numa intervenção de Conservação e Restauro existe necessariamente e sempre a execução de um diagnóstico preciso, onde se identifica patologias e se definem estratégias de tratamento. Podemos falar de imunização biológica preventiva, desinfestações por gases inertes, da selecção adequada de adesivos a usar, de consolidantes orgânicos e inorgânicos, de reintegrações volumétricas, de estruturas mecânicas de travessas (parquetages), de partições ou fragmentos, etc.

Várias deduções se podem extrair do verso de uma pintura. A “frente cromática” é correntemente sujeita a intervenções de “cosmética”, o que dificulta a sua interpretação no domínio da história de arte. Por outro lado, o verso das pinturas que usualmente é menos intervencionado e menos acessível, conserva sempre mais evidências históricas originais. Sendo assim, segundo este preceito, uma alteração negligente do verso é sempre um “apagar” da História.

Actualmente, estudos técnicos têm sido feitos, pensando em equipas de trabalho multidisciplinares entre historiadores, laboratórios e conservadores-restauradores, tornando-se em Conservação e Restauro, a questão das estruturas e suportes de madeira em pintura, uma área de qualificação e especialização, que vai para além de procedimentos de marcenaria e do sensu commune.


Frederico Henriques (Painting Conservator)

Miguel Garcia (Panel Painting Conservator)



[1] Colecção Zarco Antiquários

[2] Idem.